Ciência no século XXI

 Precisamos de uma nova ordem científica?

    A sociedade contemporânea, baseada na racionalização dos processos, vem enfrentando uma profunda crise que atinge as instituições que lhe dão base. Negação das evidências científicas, fake news, problemas de financiamento e pressão por produtividade, por exemplo, são questões que afligem a comunidade científica.


Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS. À frente 
da instituição, seu maior desafio é conciliar as 
recomendações científicas e as decisões políticas
no combate ao coronavírus.
Foto: Denis Balibouse
     Os desafios contemporâneos exigem o surgimento de novos valores e uma visão diferenciada para a superação de paradigmas e problemas históricos. 


A ciência foi vista como a principal ferramenta para o progresso da sociedade desde a Revolução Industrial. Porém, essa visão torna-se defasada ao longo do século XX, onde os horrores das guerras, embaladas pelas descobertas científicas, faz aflorar uma debate ético e os limites da ciência. É nesse ambiente de tensões que surge a crise da razão.

 

Esse post objetiva investigar os principais dilemas que atingem a comunidade científica e os desafios para encontrar novos caminhos e espaços dentro da sociedade contemporânea.


Contexto da crise


O advento da modernidade logrou para a ciência o papel que historicamente era dado à Igreja: nela se buscava as respostas para enfrentar e superar os problemas que atingiam as comunidades. O dogma ganhou uma novo carácter: não seria mais religioso, mas um dogma científico.


Parede da Igreja Positivista do Brasil. Esse templo
localizado no Rio de Janeiro objetiva cultuar 
cientistas que contribuíram para o progresso
da Humanidade.
Foto: Templo da Humanidade

Contudo, essa crença na razão entra em crise no século XX, obrigando as sociedades a repensarem as ciências, suas instituições e até mesmo os seus valores mais fundamentais, como a democracia. As utopias, que nasceram com a crença no progresso científico, perdem espaço para o surgimento da distopia: o progresso trará uma sociedade opressora e totalitária. É nesse contexto que importantes livros são lançados, como Brave New World (1931), de Aldous Huxley.


A globalização, característica da contemporaneidade, traz consigo não só a integração econômica e cultural, mas também a científica, já que os problemas e objetos de estudo não ficam mais restritos a um local geográfico, mas tornam-se globais. Da mesma forma e paradoxalmente, a ciência também enfrenta um fenômeno contrário à globalização: o individualismo e hiperespecialização, que resultou da decadência das abordagens estruturalistas.


É esse duplo aspecto que coloca a ciência em um momento de autoreflexão. A busca por uma autoridade científica e do monopólio do saber, a pulverização e hiperespecialização do conhecimento e a responsabilidade e engajamento social do cientista são temas que tomam cada vez mais o debate científico, principalmente no campo da filosofia da ciência.


Conhecimento, ciência e comunidade


A comunidade científica é definida por Thomas Kuhn como aquela “formada pelos praticantes de uma especialidade científica", na qual compartilham o mesmo paradigma, ou seja, um idêntico modelo e concepção da natureza de onde se constrói todo o conhecimento gerado pelo grupo. Mesmo existindo uma unidade dentro da comunidade científica, também existem diversas facções e correntes internas. 


Portanto, a comunidade científica, através de suas pesquisas, valida o paradigma e o paradigma valida a comunidade científica e suas pesquisas, sendo esse um processo circular e de retroalimentação. Ou seja, um campo da ciência, como a Antropologia, só existe porque têm objeto de estudo próprio (a cultura), e o objeto de estudo (o conceito) só existe porque tem uma comunidade científica dedicada a pesquisá-lo.


Vale abrir um tópico para definir paradigma. Em sua obra mais famosa, A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn apresentar diversos significados que a palavra pode adquirir. Mas de modo geral, o paradigma é as ferramentas, métodos e crenças compartilhadas por uma comunidade científica. A mecânica newtoniana é um exemplo de paradigma: por muito tempo ela foi aceita e usada pela comunidade de físicos, mas posteriormente foi superada pela Teoria da Relatividade, de Einstein.


A pesquisa científica é, portanto, orientada por paradigmas, e sua validade depende do alinhamento com o paradigma. Todavia, existem situações em que as pesquisas não encontram mais formas de conciliar os resultados com o paradigma, causando uma crise no campo científico e a mudança do paradigma, que não estará mais sujeito a essa desconciliação e servirá de guia e validador das próximas pesquisas.


É nesse sentido que entram as discussões sobre quem tem a legitimidade do discurso científico, validando ou refutando pesquisas e visões de mundo. Bourdieu pontuou que a ciência, ao contrário do que era pregado pelo positivismo, não é desvinculada das relações sociais, preconceitos e lutas.


Os paradigmas vigentes não são resultados simplesmente de uma disputa epistemológica, sobre qual está mais alinhada com a realidade, mas também de uma disputa política e cultural, em que os grupos tentam impor seus valores e condicionar o conhecimento produzido. Nesse contexto insere-se o conceito de capital científico, na qual só consegue acumular aqueles que aceitam os paradigmas vigentes.

Ciência global, episteme local


A globalização abriu várias possibilidades para as ciências, já que as pesquisas não impactam regiões isoladas, mas têm reflexos em diversas comunidades espalhadas pelo mundo. Esse fenômeno, aliado com a chegada das instituições de pesquisa, como as universidades, em diversos lugares, proporcionou o surgimento de concepções próprias de abordagem teórico-metodológica.


Na América Latina, a ciência decolonial tem
ganhado força: é preciso criar racionalidades 
próprias e buscar soluções de problemas locais.
Figura: Joaquín Torres-García. 

Assim, a dominação epistemológica se enfraquece - mas ainda não foi totalmente superada. Nessa nova dinâmica se insere a emergência dos chamados subaltern studies, na Ásia, ou das concepções descolonialistas na América Latina, que buscam a criação de uma comunidade científica local e uma ciência própria baseada nas questões mais urgentes nas sociedades dessa região.


É baseado nesses questionamentos contra a ordem científica estabelecida e de poder legitimante do conhecimento, que Grosfoguel, sociólogo porto-riquenho, vem falar sobre os epistemicídios que ocorreram ao redor do mundo por parte dos países dominantes contra as sociedades e grupos que não se encaixavam nos padrões hegemônicos e não eram vistas como participantes da comunidade científica.


    Essa perseguição explica o porquê do conhecimento básico, ou paradigma, das ciências modernas emanam de um seleto grupo de homens - que compartilham entre si características semelhantes - de um seleto grupo de países, em grande parte situados na Europa.


Reconhecer o racialismo, o sexismo e as forças políticas por trás da produção do conhecimento é o primeiro passo para desvincular-se das velhas práticas científicas de silenciamento epistêmico, além de avançar na busca pelo estabelecimento de uma nova ordem científica mundial.


Papel do cientista contemporâneo


Um movimento que marca a sociedade contemporânea é superar a visão de que a ciência e o conhecimento produzido e legitimado é guiado puramente por aspectos técnicos. Assim, novos enfoques são dados ao cientista, principalmente ao cientista social, que durante o século XX tem como um de seus principais objetos de estudos os movimentos sociais.


Protesto contra cortes na educação.
Foto: Carina Brito/Editora Globo

A visão do cientista como isento e longe das forças políticas perde espaço para a do cientista que tem engajamento social e opera para a mudança efetiva da realidade. O espaço legítimo do cientista passa também para fora da academia, ocupando os espaços políticos e de articulação com os movimentos sociais.


O papel do cientista ganhou uma nova responsabilidade na sociedade contemporânea e na democracia liberal. É importante lembrar que as ciências já foram usadas para legitimar racismos e instituições totalitárias, e na sociedade liberal, seu papel é defender os valores democráticos e buscar formas de financiamento e conciliação com as práticas de mercado vigentes.


Considerações finais


Nesse post busquei fazer uma panorama geral sobre as mais variadas facetas que a ciência enfrenta na sociedade globalizada contemporânea. Todavia, existem muitas outras dimensões da qual esse tema pode ser explorado e aprofundado, além disso, o debate em torno do papel da ciência e da produção científica ainda não está totalmente acabado, existindo diversos recortes e perspectivas.


Assim, é preciso que a ciência deixe de se encerrar nos espaços institucionais de pesquisa, mas também se integre à sociedade ao mesmo tempo que reconheça a grande diversidade cultural e epistêmica existente. 


O discurso da autoridade científica não deve estar concentrado nas mãos de poucos países ou de seletos grupos que impõe seus valores e suas agendas. Superar isso é, sobretudo, superar o velho paradigma histórico do colonialismo, sexismo e racialismo.




2 comentários:

  1. Muito bacana o artigo e seu blog é bem interessante. Concordo em relação a um dos dilemas pelo qual a ciência passa que é o da pulveirização do conhecimento. Na antiguidade, os filósofos eram também historiadores, geógrafos, antropólogos, linguistas, sociológos... Hoje, o conhecimento científico está cada vez mais compartimentado. É como se um médico se especializasse nas funcionalidades de um dedo polegar da mão esquerda, mas não fosse apto para atuar profissionalmente no cuidado do polegar da mão direita. Ou como um linguista que se especializa na evolução da letra c cedilha do português arcaico ao contemporâneo, mas é incapaz de dominar outros tipos de variações linguísticas ou de, até mesmo, correlacioná-las com outros campos do conhecimento.

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    1. Nossa, muito obrigado!
      Você foi muito pontual no exemplo.
      Parece que essa superespecialização do conhecimento já é forçada logo na graduação: você é pressionado a escolher uma linha de pesquisa e seguir nela. Apesar disso, o mercado pede "profissionais polivantes", que conheçam um pouco de cada área e as diversas ferramentas oferecidas.
      Enfim, nós, da antropologia, temos o poder-dever (ou o dever-poder?) de fazer a apropriação das diversas áreas do conhecimento: física, biologia, ciência política, estatística, filosofia e informática.

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