Processos políticos-administrativos nas comunidades tradicionais brejeiras

Os processos de globalização não mudam somente a percepção do tempo e do espaço, mas trabalham de maneira a alterar as experiências pessoais em seus atos cotidianos. Esse fenômeno de mudança não é exclusivo das sociedades urbanas, tampouco restringe-se aos centros financeiros e políticos, mas chega também nos brejos e veredas do sertão baiano, modificando de forma profunda a vivência das pequenas comunidades camponesas.

Vista aérea da comunidade de Ibiraba.
Tirada durante a pesquisa de campo junto com Enzo.
    No oeste baiano, a ideia de progresso tem ganhado força com o avanço do agronegócio, sendo uma fronteira agrícola brasileira. O crescimento econômico experimentado por essa região traz um duplo aspecto, se por um lado problemas históricos foram superados, por outro há um acirramento dos conflitos políticos e econômicos. As instituições que se consolidaram na região não se adaptaram às formas de pensar brejeiras, atropelando a relação das comunidades com o território e colocando em risco sua própria identidade. 

    O município de Barra está inserido no território de identidade do Velho Chico, sendo que sua população concentra-se nas zonas rurais em pequenos núcleos de comunidades tradicionais. Essas comunidades desenvolvem instituições sociais próprias, dotando as relações de trabalho com características únicas. A base dessas vivências formam-se na ética camponesa, que segundo Marques (2008, p. 59) estrutura-se no eixo moral entre o trabalho, a família e a terra.

    Nesse sentido, os processos político-administrativos para a formulação de políticas públicas devem ser repensados, considerando as formas de articulação e de interação com o mundo que essas comunidades carregam. 

Campesinato como ordem moral e política

Por  muito tempo, o processo de criação de políticas de desenvolvimento rural, no Brasil, esteve restrito a uma pequena elite agrária, ao mesmo tempo que as comunidades tradicionais brejeiras, embora contem com organizações políticas próprias, sempre estiveram na margem dos circuitos políticos e espaços formais de poder. 

Nesse contexto, as comunidades brejeiras ao longo do rio São Francisco são caracterizadas pela sua forma de produção precária, com distância às feiras, infraestrutura deficiente e baixa produtividade. Além disso, as relações econômicas na região dá-se através da dádiva, ou seja, não envolvendo somente uma troca material de forma mecânica, mas também as relações de parentesco e os valores afetivos.

É importante pontuar que as relações sociais locais não seguem a lógica que se consagra nos ambientes urbanos. Assim, por exemplo, poucas pessoas têm o título formal da terra em que cultivam, sendo esta de uso comum, e o trabalho confunde-se com as tradições religiosas e as redes familiares.

    Sendo a cultura dessas comunidades distinta da vigente na burocracia estatal, as políticas públicas de desenvolvimento aplicadas nessa região são muitas vezes descoladas dos anseios locais, afetando a estabilidade social, como a devastação ambiental e acirrando os conflitos por terra. Isso acontece pois o poder público ainda não consegue inserir esses atores brejeiros nos processos políticos, em especial na formulação dos instrumentos. 

    Nesse caso, é comum as políticas públicas não obterem os resultados desejados. Dessa forma, segundo Kluck (2011, p. 31), surge a ideia de “atraso” difundido pelas elites urbanas locais, visando criar um discurso político para afetar a formação da agenda política, sem novamente consultar os mais afetados, criando assim um ciclo de exclusão dos espaços formais de poder e ineficiência estatal.

    Com o passar dos anos e com a abertura política ocorrida em 1988, novas formas de fazer políticas públicas foram desenvolvidas, priorizando a ativa participação societal. É nesse contexto que a Constituição de 1988 incorporou o pluralismo político, previsto no art. 1º, inciso V. Ainda no Art. 1º, na redação do parágrafo único lê-se que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Brasil, 1988), o pluralismo político, que tem entre seus expoentes Robert Dahl, não se limita ao pluripartidarismo, mas reconhece a existência de múltiplos polos de poder na sociedade que poderiam distribuí-lo para que mesmo um governo eleito pela maioria não imponha seu projeto às minorias, assim não as excluindo do processo político após as eleições (Dahl, 1956).

    É necessário, portanto, que se reconheça nas comunidades brejeiras esses polos de poder e que se criem condições para a sua participação nos circuitos políticos-administrativos, para que possam contribuir com as suas experiências, desejos e preferências. Para Howlett, Ramesh e Perl (2013, p. 124) a configuração dos espaços de debate promovidos pelo Estado podem afastar ou incentivar a participação de novos atores. Assim, audiências públicas e consultas formais tendem a dar preferência a atores mais especializados e afastam novos participantes.

O progresso no sertão 

O sertão nordestino, ao longo da constituição do Estado brasileiro, sofreu diversas políticas de desenvolvimento que, na verdade, tem como objetivo principal “modernizar” as relações de trabalho, como a retirada dos trabalhadores do campo (mobilização forçada da força de trabalho), assalariamento e proletarização, além da mecanização da agricultura (Kluck, 2011, p. 13).

Maquete 3D do projeto da ponte. Em minha ida
a campo, a construção da ponte era pontuada por todos
como um projeto modernizador.

    A região, que cresceu através do comércio fluvial do rio São Francisco, perdeu importância econômica a partir da década de 1950 com a crescente utilização do transporte rodoviário, tornando-se, segundo o discurso disseminado na região, “isolado”. Somente a partir da década de 1998, o governo estadual conectou a região às rodovias, com a BA-160, ligando à Ibotirama, e a BA-161, ligando à Feira de Santana, atendendo a um desejo da região que trouxe uma esperança de desenvolvimento e volta aos circuitos comerciais (Kluck, 2011, p. 31). 


Atualmente, o Estado opera nessas regiões principalmente através da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF), SUDENE e a CHESF, de forma administrativa, e o FINOR e o Banco do Nordeste, de forma financeira. Todavia, como vimos, a implementação dos instrumentos políticos, que hoje baseia-se principalmente na renúncia fiscal e créditos com taxas favorecidas, nem sempre conseguem obter êxito, podendo inclusive promover efeitos contrários, como a destituição identitária.

    Como exemplo de uma política que não conseguiu atingir seus objetivos iniciais foi a política de aperfeiçoamento técnico promovido pela CODEVASF, que, dentre outras coisas, incentivou a profissionalização técnica e abriu linhas de créditos voltadas a essas comunidades. Mas o que ocorreu de fato foi a contração de dívidas difíceis de serem pagas e a migração de muitos trabalhadores para a cidade (Kluck, 2011, p. 70). Assim, questiona-se a eficácia dos instrumentos adotados e, de forma mais profunda, as práticas usadas pelos gestores para a sua construção. 

A solução para que se crie políticas mais eficientes é inserir nos circuitos de debates essas comunidades tradicionais. Todavia, esse processo mostra-se mais complexo do que aparenta ser, uma vez que o Estado tem que promover mudanças em suas instâncias de debates, adaptando para que o pensar brejeiro seja compreendido.


Espaços políticos brejeiros

Como vimos, essas comunidades já contam com organizações políticas próprias, apoiadas em suas redes familiares e religiosas. Como o Estado é ineficiente em seu processo de escuta dessas comunidades, historicamente coube ao clero assumir a tutela sobre esses povos, sendo a diocese, a paróquia e seus movimentos sociais os responsáveis pela promoção de diversas políticas.

Assim, podemos citar como exemplo de tutela a ação pastoral, no qual a Igreja Católica assume as funções do Estado, promovendo campanhas de desenvolvimento e mobilização política. Esse fato é explicado por causa da moralidade brejeira estar baseada nos princípios religiosos cristãos, além disso, os agentes católicos têm mais capilaridade e atuam de forma conjunta com os brejos, escutando suas demandas e repassando, quando pode, ao poder público.

Dom Orlando, bispo diocesano, organizando o povo contra os grileitos.  
Foto: Joana Camandaroba. 1982.


A Comissão Pastoral da Terra (CPT) é a grande responsável por articular essas comunidades em defesa dos direitos dos povos originários, organizando anualmente a Romaria da Terra e das Águas de Bom Jesus da Lapa, no qual denunciam o avanço do agronegócio e as políticas de desenvolvimento que não atendem aos reais interesses dos afetados. No ano de 2017, mil ribeirinhos invadiram fazendas na cidade de Correntina, protestando contra as políticas de desenvolvimento da região, que priorizam o agronegócio em detrimento dos povos tradicionais. Na ocasião, a fazenda retirava, em média, 106 milhões de litros de água diariamente, diminuindo o fluxo do rio e impedindo aos povos tradicionais a continuidade dos seus métodos de sobrevivência (CPT et al, 2017).

Outro fato que demonstra essa participação política através dos movimentos religiosos foi a greve de fome iniciada pelo bispo local, Dom Frei Luiz Flávio Cappio, em defesa da revitalização do rio São Francisco e contra o projeto de transposição proposto (G1, 2007).


Dom Frei Luiz, bispo diocesano, em sua primeira greve de fome. 
Foto: Marco Aurélio Martins. 2007.

Dessa forma, é perceptível que a Igreja conseguiu adaptar sua estrutura para abranger as formas de articulação local, ao passo que isso é ignorado pelo Poder Público. Tem-se, assim, o clero e seus agentes como um canal precário de comunicação entre o Estado e a sociedade. 

Conclusão

Considerando os aspectos analisados, percebemos um duplo discurso nessa região: se por um lado as comunidades tradicionais são enfatizadas nas políticas de desenvolvimento, por outro elas não são inseridas nos circuitos políticos-administrativos, cabendo à burocracia decidir sobre os instrumentos a serem adotados.

Resolver essa tensão é essencial para o sucesso das ações desenvolvidas, além disso, deve-se criar espaços de debates que sejam abertos à participação brejeira, capacitando a burocracia para que consiga captar os interesses e preferências dessas comunidades.


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