Relações de poder no trabalho


Cartaz do clássico filme "O homem que virou suco".
Repare na posição do trabalhador:
no topo do prédio. Consegue imaginar quem trabalha
no térreo e quem tem sala no último andar?
Foto: Almanaque virtual
     Estudar as relações de poder nas organizações de trabalho é investigar não somente os processos que buscam conformar a organização administrativa e disposição física das salas e objetos, mas é também observar os atores que transformam o contexto da experiência social. Dessa forma, nesta postagem pretendo discutir através do trabalho de Foucault como as atividades laborais atuam no controle dos corpos.

Foucault e Marx são dois pensadores mais visitados quando se quer fazer uma análise histórica a respeito das relações de poder. Enquanto Marx adota um processo dialético em seu método e a forma material de produzir e modificar a realidade, concebendo a funcionalidade econômica do poder, Foucault aplica a reconstrução histórica do objeto para investigar as relações do poder que possibilitaram a sua forma atual.


Poder e disciplina


         Para Foucault, o poder não é um objeto em si, uma propriedade que existe independente da vivência humana, mas é uma ação exercida através de táticas e métodos estratégicos. Dessa forma, o poder é comparado com a ideia de “empurrar”, uma ação que só existe se é exercida, mas não pode ser possuída de forma concreta. Assim como é mais adequado falar sobre o ato de empurrar, é também mais adequado conceber as relações de poder que o poder em si.

D. José Emanuel. Note que ele
segura um cetro na mãos esquerda:
símbolo do poder político.
Apesar disso, não podemos segurar
nas mãos o poder em si, mas exercê-lo.
Crédito: Wikimedia Commons

A disciplina seria uma das formas em que o poder manifesta-se sobre os outros, moldando e dominando os corpos alheios. A função da disciplina é fabricar corpos dóceis, que se movimentam de forma obediente, aumentando a utilidade socioeconômica, ao mesmo tempo que se perde a autonomia política e capacidade de articulação.


Nem sempre o poder e a disciplina manifestam-se com a coerção violenta, mas apresentam-se de forma sutil e subjetiva, permeando todo o corpo social. Esse poder subjetivo passa pelas questões epistemológicas, ditando o que é pensável e impensável, sociais, ditando a ética e a etiqueta, e econômicas, ditando a forma de produzir. Para Foucault, as instituições sociais são os principais mecanismos de atuação do poder disciplinador da sociedade, como as escolas, hospitais, manicômios e presídios.


Disciplina no trabalho


Se a escola é um centro de controle da episteme e o presídio o centro correcional, o trabalho também é um aparelho disciplinador que objetiva “produzir operários eficientes que saibam o seu devido lugar, que cooperem entre si, que façam uso lucrativo do tempo, que se sintam vigiados e sujeitos a punições” (MENEGHETTI, 2016).


No feudalismo, o modo de produção não incorporava alguns elementos e valores que hoje são bastantes difundidos e aceitáveis, como o trabalho assalariado, produção em grandes indústrias e a acumulação. Para a mudança do modus operandi e a instalação da indústria, foi necessário o uso de forças coercitivas, legais e epistemológicas, para conformar a sociedade, como por exemplo, a expropriação de terras de cultivo comum ou a mudança no sistema prisional para reprimir a mendicância e ociosidade.


Cena do filme "O diabo veste prada". A protagonista
é impelida a se moldar ao ambiente de trabalho: adquire
novas formas de se vestir e de se relacionar.

No capitalismo, a divisão do trabalho exige disciplina e observância às normas, adequando os corpos à maquinaria. Assim, Marx compara o ambiente de trabalho com um ambiente militar, no qual as Leis Marciais dão lugar às normas organizacionais da qual o patrão é legislador absoluto e conta com supervisores e fiscais para vigiarem corpos desviantes. Caso seja constantado inobservância, são aplicadas sanções normalizadoras, que são atos punitivos como multas e descontos no salário visando conformar o corpo, os movimentos e os seus gestos, realocando o indivíduo no seu espaço.


As novas demandas do mercado na contemporaneidade mudaram essa concepção punitivista e coercitiva. As organizações estão empenhando-se para dar um novo significado ao conceito de trabalho, a chamada “ética do prazer”. O preceito principal dessa nova ética é não somente a valorização dos conhecimentos técnicos e científicos, mas também o apreço das questões humanas e subjetivas para a superação dos velhos dilemas.

Sede do Google na Irlanda. Hoje as empresas querem
que os funcionários "vistam a camisa" e sintam-se
integrados à "cultura organizacional". Em contrapartida,
as organizações apoiam as conquistas pessoais, e.g. pagando
uma pós-graduação, e oferecem flexibilidades e
comodidades. Foto: Peter Würmli

O campo da Gestão Empresarial teve grandes mudanças com o avanço da globalização. Dominado pelas teorias científicas e clássicas, baseadas na vigilância e hierarquia rígida,  hoje vem aceitando novas concepções de administração, como as cooperativas e os círculos de controle de qualidade (CCQ), na qual os funcionários são chamados de colaboradores e sentem-se motivados a unir suas aspirações pessoais aos objetivos da empresa, quebrando a barreira entre o privado, o particular e o público. 


Essas nova conjuntura, porém, ainda conserva sinais das velhas práticas. Essas novas organizações são novos mecanismos de poder/saber que o empresariado usa para proteger seus interesses, mostrando uma postura de boas-práticas ao mesmo tempo que maquinam para ocultar atos inaceitáveis, como o trabalho infantil e condições precárias de trabalho em suas subsidiárias ou fornecedoras. O poder disciplinador não aparece mais em sua forma “pura”, mas velada e atingindo todas as dimensões da vivência humana. É comum as empresas aplicarem medidas sancionatórias a funcionários por curtirem ou compartilharem algo indesejado em suas redes sociais.


Gênero e mercado de trabalho


Para Foucault, o poder não se limita a um polo, mas é o resultado de múltiplas interações e influências. Assim, analisar as relações de gênero no mercado de trabalho envolve fazer uma profunda reflexão sobre todos os aspectos vinculantes. Para Coutinho, a construção da identidade é “sexuada e contextualizada em uma inter-relação com a raça e a classe social em um espaço de dominação cultural ‘androcêntrica e eurocêntrica’ que determina os parâmetros da edificação das desigualdades”. Assim, a divisão sexual do trabalho é resultado da própria construção do ser.


Mesmo com a ascensão dos movimentos feministas, ainda perpetua a divisão de tarefas masculinas e femininas. Essa diferenciação não se dá pelas capacidades biofísicas ou intelectuais de homens ou mulheres, mas pelo que se deve fazer.


Antes, valia a divisão das atividades laborais em trabalho produtivo, remunerado e masculino, e o trabalho doméstico e feminino. Com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, elas passaram a ter uma dupla jornada, acumulando o trabalho doméstico e o produtivo, sendo que neste último são reservados lugares submissos, inferiores e que demandam baixa qualificação.


Foto dos "líderes do BRICS".

Assim, cria-se uma imagem do “líder” como atribuições masculinas, reforçando esteriótipos e conservando valores que perpetuam a submissão feminina. Para uma mulher alcançar espaços de liderança e poder de governabilidade, ela deve mudar seu comportamento, tomando para si características masculinas. A Teoria do Papel Social diz que para cada indivíduo são atribuídas ações socialmente aceitas: do homem é esperado a masculinidade viril, a liderança e a imposição e da mulher é esperada a submissão, cuidado da prole e dos afazeres domésticos.


O Bolsa Família deu às mulheres independência
financeira, permitindo que saiam de relacionamentos
abusivos, busquem qualificação profissional e inserção 
no mercado de trabalho. 
Foto: Rede Brasil Atual


A independência financeira das mulheres também é uma fenômeno a ser analisado, pois ele traz como consequência a independência social, facilitando sair de relacionamentos de dependência (e consequentemente abusivos). Assim, quanto mais afastadas as mulheres estão do trabalho, mais difícil é o seu poder de articulação para lutar por melhorias. Essa impotência política é o que Foucault chama de corpo dócil.



Considerações finais


Estudar as relações de poder no trabalho é estudar a história da formação da sociedade atual, os seus dilemas, as forças produtivas e outros aspectos que vão muito além do trabalho em si, perpassando a dimensão ética e subjetiva de cada indivíduo. O trabalho, assim como a escola e o hospital, é parte das estruturas fundamentais que mantêm e regulam a sociedade, controlando os corpos, a episteme e as normas sociais.

Questões como o gênero, sexualidade, raça e religião não são desconectadas das atividades laborais, mas são modificadas e modificam a cultura organizacional. Nesse sentido, a independência do indivíduo é vinculada a sua capacidade de subverter a lógica de vigilância, punição e controle dos corpos. 


Referências


MENEGHETTI, Gustavo. SAMPAIO, Simone S. A disciplina como elemento constitutivo do modo de produção capitalista. Florianópolis. Revista Katálysis, jan/jun 2016. v. 19, p. 135 - 142. 

COUTINHO, Aldacy R. RELAÇÕES DE GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO: uma abordagem da discriminação positiva e inversa. Paraná. Revista da Faculdade de Direito UFPR. 2000.  v. 34,  p. 13 - 34


Recomendação de leitura


IPC/ONU/BRASIL. Bolsa Família e relações de gênero: o que indicam as pesquisas nacionais. Brasília. 2016.

LIMA, Lucas L. A MASCULINiZAÇÃO DA MULHER LÍDER NO BRASIL: quadro estudos sobre estereótipos de gênero e prótipos de liderança. São Paulo. FGV. 2001.

SILVEIRA, Rafael Alcadapani. Michel Foucault: Poder e Análise das Organizações. Fgv, 2005. 168 p.

VILLELA, Elisabeth C., PITA, Patrícia S., BREITENBAUCH, Graziela. A ÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: REFLEXÕES SOBRE FONTES DE PODER EM FOUCAULT E HELLER. Ribeirao Preto. Revista Paidéia. Fev. 2005. 



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