Sócrates segundo Xenofonte

Estátua de Xenofonte no parlamento austríaco.
Fonte: depositphotos.

Tanto Sócrates quanto Jesus não deixaram nada escrito, mas os seus ditos e feitos, bem como suas doutrinas tiveram impactos imensuráveis à Humanidade. Seja no caso do filósofo ateniense, seja no caso do profeta galileu, suas ideias chegam à contemporaneidade através da memória de seus intérpretes, dando margem - e com razão - para os mais críticos acusarem uma possível corrupção do pensamento. Nessa resenha iremos analisar o livro “Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates” e as características de seu autor, Xenofonte.


Xenofonte (☆ 425 - ✝ 354 a.C.) foi um discípulo de Sócrates e, ao lado de Platão e Aristófanes, vigora entre os principais intérpretes do filósofo ateniense - este último tendo uma posição satírica. Entre os seus escritos socráticos destacam-se A Apologia de Sócrates, onde descreve o processo que condenou Sócrates à morte, Banquete, que versa sobre os diálogos estabelecidos por Sócrates em um jantar, e Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates (também conhecido como Memoráveis).

 

Não se sabe ao certo quando a obra Memoráveis foi escrita, mas o mote principal é a defesa de Sócrates, mostrando o quão parcial foi o julgamento e o quão virtuosa foi a vida do filósofo. O louvor a Sócrates por parte do discípulo reforça a imagem de incompreendido e o erro da sociedade ateniense de condená-lo à morte.


A publicação está dividida em quatro livros e estes em capítulos. No primeiro, que contém sete capítulos, e no quarto, com oito capítulos, Xenofonte questiona de início o processo e apresenta os argumentos acusatórios presentes no julgamento de Sócrates (1.1). No segundo e terceiro, com 10 e 14 capítulos, respectivamente, são colocados atos concretos da vida cotidiana que testemunham a favor de inocência de Sócrates diante das acusações.


"Alcibíades sendo ensinado por Sócrates", de 
François-André Vincent (1776). Alcebíades foi discípulo
de Sócrates, sendo que promoveu levantes contra
a democracia ateniense. Por esse motivo, foi usado
pela acusação como um exemplo de juventude corrompida.
Xenofonte argumenta que seu carácter precedia Sócrates.

Para a acusação de corrupção da juventude, argumenta-se que o filósofo levava uma vida sem excessos e que instava seus seguidores a fazerem o mesmo, inclusive Crítias e Alcebíades. Já para a acusação de não reconhecer os deuses do Estado, Xenofonte tenta demonstrar que ele não introduziu novas divindades, mas que o daímôn (daemon, podendo ser traduzido com cautela como demônio) era sua própria voz interior, ou seja, sua consciência.


É interessante notar as diferenças e afinidades encontradas nos textos de Platão e de Xenofonte, ambos discípulos que escreveram textos do gênero diálogos socráticos. Platão busca nos seus textos traçar o perfil mais filosófico, compilando a teoria de seu mestre - sendo ambos filósofos, é possível que Platão tenha de certa forma corrompido as teorias socráticas; já Xenofonte, que era historiador, não envereda de forma tão profunda nas questões filosóficas.


Importante ressaltar que, assim como em Xenofonte, não temos nos textos de Platão o retrato do Sócrates histórico. Ou seja, se nos textos do discípulo historiador não é possível fazer essa busca biográfica, tampouco o é com o discípulo filósofo. 


Para Pinheiro (2008, p. 102), o que é retratado por Xenofonte não é uma biografia de Sócrates, mas são mostrados os fatos e evidências - possivelmente parciais - que embasam o argumento de que o seu mestre foi injustamente condenado. Exclui-se assim qualquer sinal de mácula e vício do personagem, além dos argumentos apresentados pela acusação e uma descrição sobre como os atenienses percebiam Sócrates (ou seja, a sua verdadeira personalidade). 


"A Morte de Sócrates", de Jacques-Louis David
(1787). A pintura é baseada no diálogo socrático
Fédon, de Platão. Interessante notar que nesse
escrito Xenofonte não aparece. Para alguns, os
discípulos de Sócrates ignoravam uns aos outros.

Dessa forma, a obra Memoráveis até pode ser tomada como um guia para entender o Sócrates histórico e os percursos de sua vida, mas devemos sempre levar em consideração que ela não abre espaço para as vozes acusatórias e contrárias ao mestre. O leitor interessado pode ter acesso a essas vozes divergentes na obra As Nuvens, onde o dramaturgo Aristófanes ridiculariza o filósofo. 


Também é importante ressaltar que Memoráveis também não se atém estritamente ao processo de Sócrates, mas somente serve como uma apologia aos argumentos apresentados. Para aqueles leitores que quiserem conhecer somente o julgamento, talvez esse não seja o ideal, e sim o escrito A Apologia de Sócrates, do mesmo autor.


Resenhar clássicos é sempre uma grande responsabildade, sendo obras consagradas na literatura científica, elas adquirem a categoria de imaculáveis. Em Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates temos um material rico para compreender as virtudes do mestre. Como não foi pretensão de Xenofonte redigir uma biografia e sim um desagravo à memória de Sócrates, devemos tomá-la com cuidado, do ponto de vista historiográfico, pela sua visível parcialidade e exclusão dos fatos que, pelo menos do ponto de vista de Xenofonte, aviltam a figura socrática.


No que toca a diagramação, é comum que os textos mais antigos e tradicionais (os clássicos), tenham a marcação do aparato crítico, comumente uma numeração que indica o estágio do texto, o que facilita a realização de anotações, debates entre leitores e a consulta posterior. 


Diante do exposto, o livro Memoráveis é recomendado para aqueles que desejam uma visão mais fática sobre a vida de Sócrates, pois Xenofonte não foca tanto nas questões filosóficas como Platão e nem satiriza como Aristófanes. Para aqueles que desejam acessar a um Sócrates histórico, infelizmente não chegou à contemporaneidade nenhum escrito que retrate o filósofo com suas virtudes e vícios. Todavia, ainda é possível fazer um cruzamento desses três autores e suas obras e extrair as convergências, divergências e inconsistências.


Referências bibliográficas


PINHEIRO, Ana Elias. O Sócrates de Xenofonte. Humanitas, [S.L.], v. 60, p. 101-113, 2008. Coimbra University Press. http://dx.doi.org/10.14195/2183-1718_60_8.

Biblografia consultada


XENOFONTE. Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009. 289 p. (Série Autores Gregos e Latinos). Tradução do grego, introdução e notas de Ana Elias Pinheiro. http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0909-6. XENOFONTE. Apologia de Sócrates. (Coleção Os Pensadores). Abril Cultural: São Paulo, 1980.




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