O corpo, a pessoa e o si mesmo

Os yanomamis não têm nomes próprios e são identificados
pelas relações de parentesco. A individualização para o
acompanhamento do estado de saúde deles dava-se através da
atribuição de números. As fotos fazem parte da série Marcados,
de Cláudia Andujar.
O dicionário Oxford Languages tem 26 definições para corpo, onde o substantivo é abordado por diferentes áreas do conhecimento. Quando se pensa no corpo humano, essa diversidade de significados, contudo, não encontra lastro no imaginário popular. Ao contrário, é visto como uma entidade autocontida, constituída por três partes fundamentais: cabeça, tronco e membros.

Do mesmo modo, pessoa também é um conceito amplo, onde cada cultura traz o seu enfoque. Nas sociedades que tiveram fortes influências do cristianismo, corpo e a pessoa conjugam-se em uma entidade só, formando o indivíduo - noção reforçada com o avanço do modo de produção capitalista. Todavia, isso não é universal e verifica-se que esses dois conceitos podem não concorrer entre si: nem sempre a pessoa é corporificada, assim como o corpo é personificado.


Assim sendo, esse post terá como objetivo investigar as diferentes acepções dessas duas entidades (corpo e pessoa). Para tanto, uso como base os estudos de Robert Hertz, em especial a ideia sugerida de que a cultura manifesta-se no corpo biológico, tema aprofundado no escrito "A preeminência da mão direita"; e de Marcel Mauss, sobretudo os seus estudos sobre a noção do eu descritas no texto "Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de eu". Por fim, abordo os desdobramentos e as consequências práticas da importância de definir essas duas entidades.


O corpo e a pessoa


Cena do documentário Babies (2010). O longa
metragem acompanha o primeiro ano de quatro
bebês em diferentes culturas. Ao longo de nossa
formação tomamos consciência do eu e dos
papéis sociais legados.

Desde o nascimento, a criança é educada para ganhar consciência corporal, seja através das brincadeiras, seja através da educação escolar. Mais do que o desenvolvimento da coordenação motora e controle muscular, podemos pensar que esse processo serve também para incutir o que ela compreenderá como corpo e pessoa. Essas noções, apesar de serem as mais imediatas da experiência humana, não são únicas, mas variam conforme o contexto sociocultural do indivíduo.

    

    Nesse sentido, Mauss investiga as diferentes sociedades espalhadas no tempo e no espaço e procura nelas as suas definições do eu. Para os povos pueblos, o indivíduo e o clã confundem-se, sendo que cada indivíduo assume um personagem que indica um aspecto da vida comunitária (dentre outras coisas, os títulos, as posições e as propriedades). A união dos personagens prefigura a identidade do clã. Já para algumas tribos australianas, como Atunta, Loritja e Kakadu, os indivíduos são vistos como reencarnações de antepassados.


Nos exemplos dados, encontramos diversas configurações diferentes com que se performa o corpo e as diferentes construções da subjetividade. Hertz, em sua pesquisa sobre a preeminência da mão direita, vem nos alertar que as questões socioculturais impõem-se sobre as questões de ordem biológicas. 


Quadro "Salvator Mundi" (1500) - Atribuído a
Leonardo da Vinci. Note que a mão direita de
Cristo aponta para o alto, em sinal de bênção.
Já a mão esquerda segura o "globus cruciger"
(orbe), símbolo do poder político e secular.
Para a mão direita, o divino, para a esquerda,
os domínios profanos. Uma superior e a outra
inferior.

Para o autor, a preemiência da mão destra sobre a mão canhota não tem bases biológicas, mas é uma instituição social porque ela reverbera os fundamentos mais básicos da sociedade: as oposições e os papéis sociais. A polaridade social surge a partir da oposição dos usos das mãos: o lado destro relaciona-se com a virtude, o masculino, a estabilidade, o bom e o belo, já o lado canhoto engloba as oposições, contaminando tudo o que está relacionado.


Assim sendo, à mão esquerda são legadas pedagogias corporais para que não assuma o protagonismo, papel que é dedicado à mão direita. A manutenção desse par de oposição é importante para que sejam demarcados o que é certo e desejável do que é hediondo, preservando o sagrado do profano (assim como os tabus servem para proteger a sacralidade). 


O corpo cristão

Para além da oposição direita/esquerda, também encontramos diversas hierarquias no corpo, tais como a cabeça/membros inferiores. Nesse contexto vale ressaltar como a ideia de corpo foi concebida historicamente no pensamento cristão, ainda presente em diversas sociedades.


A categoria de corpo e pessoa no cristianismo não foi única, mas sofreu variações ao longo de sua história. Na Idade Média, com forte influência das ideias de Platão, transportadas ao mundo cristão por Santo Agostinho (doutor da Igreja), o corpo e a pessoa eram visto como categorias separadas: o primeiro relacionava-se com o mundo sensível, com o pecado, o profano e com o erro; já o segundo ligava-se a Deus, ao mundo espiritual, ao sagrado e à verdade (Cristo). Por fim, os indivíduos eram vistos em união formando a Igreja (ekklesia - o corpo), e Cristo sendo a cabeça (1 Cor 12:12,27; Rom 12:4-5, Ef 4:4; Col 1:18) - a doutrina católica chama essa corpo místico de "comunhão dos santos".


Cerimônia do lava-pés - O Papa Francisco aproxima sua
cabeça dos pés de presidiários. Na cerimônia, o papa
relaciona-se com a santidade, a cabeça, a moralidade
e a pureza, já os presidiários ligam-se ao pecado, aos pés
(membros inferiores), ao imoral e ao imundo. Foto: Vatican Media

Interessante notar que essa visão justificou por muito tempo a dominação do masculino sobre o feminino. O masculino estava ligado à ideia de cabeça, detentor da alma e da razão, de Cristo, de poder; já feminino sintoniza o corpo, lugar da obediência e da passividade, a Igreja militante e a dependência.

 

É nesse contexto que o Apóstolo Paulo, em suas epístolas, prega: “porque o marido é o cabeça da esposa, assim como Cristo é o cabeça da Igreja, que é o seu Corpo, do qual Ele é o Salvador. Assim como a igreja está sujeita a Cristo, de igual modo as esposas estejam em tudo sujeitas a seus próprios maridos” (Ef. 5:23-24).


Se para Hertz a preeminência da mão direita era um fato social, também o é a definição de corpo e de pessoa. Em resumo, é perceptível como as questões socioculturais impõe-se sobre o domínio biológico. O corpo, o eu e a consciência de si não são “fatos naturais” ou inatos, mas variam no tempo e no espaço, atendendo as instituições locais. Por fim, não nos cabe, contudo, aprofundar o debate sobre a existência ou não de limites entre os domínios sociais e biológicos.


Desdobramentos do conceito

Se é difícil estabelecer um parâmetro único para a definição de corpo e de pessoa entre as diferentes sociedades, tampouco é possível encontrar consenso dentro de um mesmo sistema cultural. O avanço tecnológico e as novas demandas de grupos identitários, por exemplo, são pautas que têm questionado os conceitos estabelecidos.


Assim sendo, e movendo-se pelo exercício da alteridade, vamos agora abordar como as diferentes instituições urbanas concebem e definem essas entidades.


O corpo e os elementos técnicos

O corpo não é uma entidade biológica autocontida, mas transborda para além de seus limites físicos, englobando elementos técnicos. Para Andy Clarck, a mente é um dispositivo computacional que trabalha com os estímulos recebidos: às vezes, talvez na maioria delas, ela pensa com ajuda de disposivos extrassomáticos, como uma calculadora, uma régua ou um compasso

Para aprofundar

> Saiba mais sobre Andy Clark aqui

> Sobre a questão do conhecimento e elementos técnicos, já comentei em um post anterior.

Na esteira dessas reflexões, a série de televisão britânica Black Mirror, que tem como foco a relação entre tecnologia e sociedade, produziu episódios em que problematiza os limites do indivíduo, tais como Be Right Back (episódio 1, temporada 2, 2013), USS Callister (episódio 1, temporada 4, 2017) e San Junipero (episódio 4, temporada 3, 2016). Neste último, por exemplo, antes de falecer os indivíduos enviam sua consciência para a nuvem, passando a viver em uma realidade simulada.


Cena da trilogia Matrix. Nele, percepção de corporalidade
e a construção da consciência de si resume-se aos sinais
recebidos da Matrix, um computador autociente.

Por fim, na trilogia Matrix (1999, 2003 e 2003), usando como pano de fundo uma realidade distópica e as teorias platônicas e as reflexões sobre simulacro de Jean Baudrillard, é retratada uma sociedade em que os indivíduos são mantidos em uma cápsula e sua consciência é conectada à Matrix, uma inteligência artificial que simula as emoções e os estímulos recebidos. A realidade, o corpo e a noção de si tornam-se um conjunto de sinais recebidos, incluindo as sensações de dor e de prazer. Para Andy Clarck, somos todos, em alguma medida, ciborgues.


Estado jurídico da pessoa e do corpo no Brasil

As questões culturais e morais de uma sociedade reverberam em toda a sua organização social e política. É a partir dessas forças que nasce o sistema jurídico, organizando o Estado, as instituições e as relações entre pessoas e coisas. Nesse sentido, o conceito de indivíduo e de personalidade tem ganhado grande relevância no mundo jurídico brasileiro, seja no âmbito cível (com as obrigações societárias), seja na seara criminal (com a questão do aborto). 


Diante do Estado, o Cadastro de Pessoa Física (CPF)
é o documento que legitima a condição pessoa. O seu
cancelamento significa, entre outros, a morte do titular.
A expressão é comumente usada por grupos de extermínio.

De início, é importante ressaltar que o conceito legal de pessoa no Brasil é dividido entre pessoa natural (ou física) e pessoa jurídica. Do ponto de vista antropológico, é interessante notar o fenômeno das empresas individuais que são comandadas por uma única pessoa. Apesar de, na prática, haver somente um mesmo indivíduo comandando, o patrimônio, as responsabilidades e as obrigações não se comunicam, sendo criadas duas pessoas, cada uma detentora de direitos e obrigações distintas.


Apesar disso, a separação entre essas duas entidades não é absoluta. Segundo a doutrina jurídica e a jurisprudência dos tribunais superiores, é possível afastar a personalidade jurídica e considerar como uma só entidade, unindo os bens, os direitos e as obrigações, como prega o Código Civil:

Artigo 50 - Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Por fim, o ordenamento jurídico brasileiro atribui a toda pessoa direitos e obrigações, como o direito à vida, daí a importância de sua definição. No Brasil, a interrupção voluntária da gravidez é crime, exceto no caso do aborto terapêutico ou aborto sentimental. Todavia, recentemente foi julgado no STF que o aborto de anencéfalos não constitui crime porque não há atividade cerebral (ADPF 54/DF) - contrariando o entendimento de entidades religiosas que demavam o reconhecimento do feto como pessoa. Assim sendo, a vida começa quando há atividade cerebral - nesse ponto, chamo atenção ao discutido no tópico anterior sobre a hierarquia cebaça/corpo. 


Além disso, nessa esteira foi julgado pelo STF que é constitucional o uso de células-troncos embrionárias em pesquisas, desde que embriões inviáveis (ADIN 3510/DF) e que que não caracteriza crime o aborto no caso de interrupção voluntária da gravidez no primeiro trimeste de gestação (HC 124.306/RJ).


Conclusão

Um dos conceitos básicos do budismo é a anatta (ou não-eu).
Se no cristianismo a alma é imutável, o budismo concebe
como em constante transformação. O nirvana é atingido
pelos seres que não se prendem ao passado ou ao futuro
(desprendimento).

Diante do exposto, percebemos que o corpo e a pessoa não são entidades estanques e inatas. Não sendo estanques, transbordam-se para a realidade que as cercam; não sendo inatas, moldam-se conforme a cultura, influenciando os papéis sociais adquiridos pelos indivíduos e as suas relações com as instituições (Estado, família, religião etc). 


Apesar de fazer parte da experiência mais íntima do ser humano, a consciência de si e a definição de pessoa estão em constantes mudanças. As mais recentes são provocadas especialmente pelo avanço técnico-científico. O eu incorpora-se aos elementos técnicos, formando corpos ciborgues. 


Da seara jurídica, passando por temas pautados pela biologia, moral e religião, o fato é que a evolução moral da sociedade não acompanha as evoluções tecnológicas. O fato do social imperar sobre o biológico já está consolidado nas diversas ciências, cabe-nos agora investigar quais os seus limites na interação homem/máquina.


            Para aprofundar

Cláudia Andujar - Série Marcados.

Entrevista com Andy Clark. - Somos todos cyborgs

Hertz, Robert. “A preeminência da mão direita. Um estudo sobre a polaridade religiosa”. (capítulo do livro Religião e Sociedade)

LARAIA, R. de B. Cultura : um conceito antropológico. [s. l.]: Jorge Zahar, 1986. ISBN 9788571104389

Mauss, Marcel. 1974. Sociologia e Antropologia, vol. II. São Paulo: EPU

Molina, Suely F. Ciborgue: a mente estendida de Andy Clark. Dissertação de mestrado - PPGFil/UFSCAR. São Carlos: UFSCar, 2008, 115 p.




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