Sobre as obrigações de dar, de receber e de retribuir
O Ensaio Sobre o Dom, também conhecido de Ensaio Sobre a Dádiva, de Marcel Mauss, é um dos livros clássicos da Antropologia Cultural. Publicado em 1925, seu objetivo é compreender o direito das obrigações presente nos sistemas de trocas a partir das práticas em sociedades primitivas da Polinésia, Melanésia e noroeste americano.
Caracterizando a dádiva
O regime de troca de dádivas, descrito por Mauss, caracteriza-se como transações que, de modo aparente, são livres, voluntárias e gratuitas, mas, de forma velada, revelam-se obrigatórias e interessadas na retribuição.
Mais do que simples trocas de bens, trocam-se amabilidades e constroem-se alianças em um fenômeno onde diversas instituições sociais são mobilizadas. A circulação de riquezas, para Mauss, é somente uma das facetas do contrato firmado.
Diversos fenômenos da vida social são revestidos de dávida. O casamento, por exemplo, é muito mais do que uma cerimônia que celebra a união entre duas pessoas. Os noivos convidam os amigos para uma festa, com comidas, brindes e presentes. Os convidados, por sua vez, retribuem com presentes para os noivos. Assim, são estabelecidas trocas econômicas e de amabilidades, mobilizando, por exemplo, as instituições econômicas (presentes), religiosas (igreja) e jurídicas (cartório).
Note que no casamento convencional os noivos não cobram pelo ingresso e nem os convidados cobram pelos presentes. Tudo é, a princípio, espontâneo e dado sem objetivo aparente de retribuição. Todavia, ultimamente tem ganhado visibilidade o chamado casamento por adesão, onde os noivos cobram uma taxa para os convidados. Por ir de encontro aos preceitos da dádiva, a sua realização é ainda feita com muita polêmica ou regras que tentem atenuar ou adequar às obrigações estabelecidas, como ser gratuito para pessoas mais especiais.
Nessa toada, é importante notar que o objeto dado carrega consigo o espírito do doador (hau para os maoris), devendo o tomador não guardar para si a dádiva, mas deixá-la em constante movimento até que volte ao seu local de origem ou que produza dádivas de valor semelhante.
Também é interessante notar que são três as obrigações imputadas aos participantes: o dever de dar, o dever de receber e o dever de retribuir. A quebra de qualquer preceito pode levar a sanções (ser sovina, fazer desfeita ou gerar ingratidão) e a
quebra das relações pactuadas.
Para finalizar a caracterização, é importante observar que, para além da utilidade econômica dos objetos trocados, está a sua função nas sociedades: ao mesmo tempo que articula e reafirma as instituições sociais locais, também reafirmar a moral do tomador e do doador.
Lançando uma reflexão sobre esse modo de trocas, é possível pensar na Teologia da Prosperidade como uma economia de dádiva: dá-se aos deuses para que eles obrigatoriamente retribuam com graças e com a providência divina.
Fato social total
Para Mauss, os fatos sociais totais são aqueles em que se experimentam diversas instituições sociais juntas (econômicas, jurídicas, morais, repressivas etc). Sendo também coercitivo (vinculado: a inércia de praticar a dádiva pode trazer sanção), geral (recai sobre todos, não sobre alguns indivíduos) e exterior (não parte da vontade do indivíduo, mas da sociedade).
Nesse contexto, a sua importância deriva da função de garantir a (re)produção social (explicado na questão abaixo) e a sociabilização dos indivíduos e dos grupos. Os circuitos de dádiva podem evidenciar desafetos, consagrações, alianças e guerras.
O senso comum é caracterizado como a forma de pensar, agir e conceber o mundo conforme as normas da cultura que foram incorporadas durante a vivência em sociedade. Normalmente é dado como dogma, não passível de questionamentos ou transgressão. Para Mauss, “não basta constatar o fato, é preciso deduzir dele uma prática, um preceito moral”.
Assim, quando é lançado um convite para um aniversário, por exemplo, o convidado logo preocupa-se em providenciar um presente, não sendo aberto espaço para reflexão sobre o ato praticado. Associa-se, assim, a dádiva com a caridade ou com o desprendimento (no sentido cristão do termo. ex.: 2 cor 8, 14). Apesar de aparentemente gratuito e genuíno, a escolha de dar ou não a dádiva não é um ato discricionário, tampouco receber é uma faculdade (a recusa causa a desfeita).
Dádiva e reprodução social
Em síntese, a dádiva garante a produção e reprodução social ao instituir obrigações recíprocas entre os indivíduos. Essas relações são firmadas em uma intensa e crescente cadeia que envolve todos os indivíduos da comunidade, mobilizando diferentes instrumentos e atingindo diferentes objetivos.
As relações de dádiva são responsáveis por articular as diversas instituições sociais (fatos sociais totais), por criar e reafirmar alianças entre pessoas/grupos e por instituir a honra e o prestígio. Nesse sentido, podemos refletir que as práticas de dádiva suprem a ação estatal: organizam a vida social, distribuem direitos e obrigações e regulam as práticas jurídicas de trocas.
Ao movimentar as diversas instituições sociais, as dádivas garantem a construção da identidade dos indivíduos e a sua socialização, reafirmam a unidade e as alianças, celebram a paz e afastam o perigo das guerras e do isolamento. Além disso, demarcam quem são os iguais e quem são os estrangeiros: o eu/nós é reafirmado, estabilizando as relações comunitárias.
É interessante notar que a questão da dádiva ronda também as sociedades com Estado e são, de certo modo, institucionalizadas, como no caso brasileiro em que o Código Civil reserva um capítulo sobre “as obrigações de dar”. De forma curiosa, uma doação pode ser revogada por “ingratidão” do recebedor (uma situação caracterizada como ingratidão é se o recebedor negar alimentos ao doador - art. 557, IV).
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