Considerações sobre as Línguas Indígenas

Botocudos, 1835. Johann Rugendas.

Acredita-se que em 1500, época da invasão portuguesa e início da colonização do território, o Brasil possuía cerca de 600 a 1000 línguas indígenas, divididas em diversos grupos linguísticos, como o Tupi-guarani, Jê e Tukano.


Todavia, é importante salientar que esse número é aproximado, visto que muitas línguas acabaram extintas sem deixarem registros. A depender do autor ou dos métodos de pesquisas, o número pode apresentar variações. Além disso, o conhecimento que se tem hoje sobre a diversidade linguística indígena dessa época vem dos estudos dos padres jesuítas. Como por muito tempo a colonização estava quase que restrita ao litoral, temos muitos registros sobre esses locais e pouco sobre o interior.


É nesse sentido que Silva (2015, p. 4), com base nos estudos de Rodrigues (1993), faz a seguinte estimativa: se em 1584 o Padre Fernão Cardim cataloga 69 línguas em uma área de 550 mil km² (6,4% do território nacional), então projeta-se que 1.078 línguas existiam ao todo.


A controvérsia sobre a quantidade de línguas indígenas não está restrita somente aos tempos coloniais. Ao contrário, ainda resiste na contemporaneidade, apesar das facilidades de registro provocadas pelo avanço nas técnicas de pesquisa e nos sistemas de informação. Segundo estimativas do IBGE, levantadas a partir do Censo Demográfico 2010, o Brasil tem cerca de 274 línguas indígenas (IBGE, 2010), já para Destri (2018) são 170 e Storto (2019) estima em 154.


A discrepância dos números tem como pano de fundo a discussão sobre o que é um grupo linguístico, uma língua e um dialeto. As fronteiras entre essas classificações não são bem definidas, ganhando contornos políticos-ideológicos - como é o caso da região dos balcãs, em que, apesar de na prática ser a mesma língua, os seus habitantes dividem-se entre os falantes do croata, do montenegrino, do bósnio e do sérvio.


Se é controverso o número de línguas existentes, também não é consenso o número de línguas em risco de extinção. Partindo do trabalho de Chanelle Dupuis (2019), temos as seguintes estimativas:



Entidade

Línguas em risco de extinção

Endangered Languages Project

183

Ethnologue

154

Atlas Unesco das Línguas do Mundo em Perigo

178

 
  

Além disso, algumas línguas sobrevivem na memória de alguns praticantes remanescentes. Assim é o caso da língua yawalapiti, que só têm dois falantes vivos, e também a língua xipaia, que ainda resiste na voz de Maria Xipáya, última falante viva.


A extinção de uma língua indígena traz consigo a perda do patrimônio cultural brasileiro e a redução da diversidade cultural. Além disso, torna mais trabalhoso a investigação da história linguística, os seus troncos e os movimentos migratórios realizados pelos ameríndios. 


Mapa das terras indígenas no Brasil. Em verde,
homologada. Em amarelo, com restrição de
uso a não índios ou em identificação.
Em roxo, declarada. Em laranja, identificada.
Fonte: ISA, 2015.

É importante notar que a diversidade linguística no Brasil é diretamente proporcional à existência de terras indígenas. O Norte brasileiro concentra, proporcionalmente, a maior quantidade de terras indígenas reconhecidas e também a maior quantidade de falantes de línguas indígenas. Por outro lado, o Nordeste apresenta o menor percentual de terras indígenas demarcadas e também o menor número de falantes de línguas nativas (IBGE 2010).


É possível pensar também a preservação ambiental como operador da preservação da diversidade. O gráfico abaixo mostra a relação existente entre a preservação cultural-linguística e a demarcação de terras indígenas. Segundo o Censo Demográfico 2010, realizado pelo IBGE, estima-se que somente 37,4% do total das pessoas indígenas com mais de 5 anos falam uma língua indígena, ao passo que 82,5% sabem falar em português.





Dentro das terras indígenas, 53,3% dos indivíduos falam alguma língua indígena; enquanto fora desses territórios esse número reduz para 12,7%. A preservação linguística passa pela preservação cultural e ambiental, pois esta primeira reflete a cosmologia, os rituais e as crenças dos seus falantes. 



Histórico


A história das línguas indígenas antecede a invasão lusitana em 1500. Apesar de não haver muitas fontes documentais sobre a história das línguas indígenas, existem métodos linguísticos para fazer inferência sobre o passado. A linguística, que pode ser considerada um ramo da Antropologia, detém ferramentas que conseguem rastrear os movimentos migratórios e a dispersão linguística. 


Esquema da migração humana ao continente
americano. Apesar das diversas pesquisas,
ainda não há consenso sobre o tema.
Fonte: National Geographic Magazine.

No campo da linguística diacrônica, existe grande controvérsia entre os pesquisadores - que utilizam de métodos mais ou menos ortodoxos - sobre a história linguística no continente Americano, que está diretamente relacionada com a história dos movimentos migratórios. 


De todo modo, a maioria das informações atualmente disponíveis vêm dos registros deixados pelos padres jesuítas. Com a colonização portuguesa, esses clérigos foram um dos principais atores de interiorização, aprendizado e catalogação das línguas indígenas. A origem dessa Ordem data o século XVI e o contexto da contrarreforma da Igreja, objetivando a expansão da fé católica pelo mundo.


Entre as habilidades dos seus membros, estava a facilidade de assimilação linguística - fato que contribuiu enormemente para o seu fortalecimento político e econômico nas terras coloniais. Sendo também conhecidos pela sua instrução, essa ordem também foi responsável pelas primeiras escolas. Inclusive a primeira em território nacional foi fundada em 1549, em Salvador, dando início ao período jesuítico da Educação brasileira. 


A grande concentração de poder político e econômico nas mãos desse grupo, além dos conflitos sobre os rumos que a colonização poderiam tomar, colocou esse grupo em choque com a administração pombalina.


"O Marquez de Pombal dita a José
Seabra o decreto da expulsão dos
jesuítas". Fonte: Wikimedia

A ascensão de Marquês de Pombal ao cargo de primeiro-ministro, com seu objetivo de secularizar o Estado lusitano, elevou as tensões com os jesuítas. Essa crise na colônia teve como ponto crítico a expulsão dos jesuítas do continente, em 1559.


Um pouco antes, em 1755, foi editado o Diretório dos Indígenas, uma lei que regulava o estado jurídico dos povos nativos das colônias portuguesas. Seu objetivo principal era prover “não só os meios da civilidade, mas da conveniência” aos povos indígenas. Entre as regras previstas, estava a proibição das línguas locais (item 6).


É importante notar que essa norma pode ser lida com dois objetivos principais:


  1. Suprimir a cultura indígena com a introdução do índio à vida civil. Ao não permitir o uso da língua, há um processo de apagamento cultural. Inclusive o próprio diretório deixa claro que essa proibição “é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes”.

  2. Aumentar as possessões portuguesas: em 1750 os reinos de Portugal e da Espanha selaram o Tratado de Madri, que redefiniu as fronteiras do novo mundo, substituindo o Tratado de Tordesilhas. O seu princípio básico era uti possidetis, ita possideatis, ou seja, possui de direito quem possui o terreno de fato. Assim, os territórios que passaram a pertencer ao lado lusitano seriam aqueles efetivamente colonizados, com os habitantes adotando as práticas portuguesas e a língua portuguesa. A figura 2 mostra a importância de, naquela época, aumentar a capilaridade da lusofonia.



Língua Geral Amazônica


Apesar da diversidade linguística dos povos ameríndios na época da colonização ter sido grande, os diversos idiomas compartilhavam entre si semelhanças, partindo de um mesmo tronco ou participando de um mesmo grupo linguístico.


Esquema com a variação da palavra "kwetwores"
(proto-indo-europeu).

A trajetória histórica da migração humana saiu do continente africano e teve como ponto final o continente sul-americano. Assim, é perceptível que a diversidade linguística, assim como a genética, teve apenas um ancestral em comum, tendo apenas pequenas variações.


Os padres jesuítas, em seu projeto civilizatório e de interiorização no norte brasileiro, começaram a documentar e sistematizar as diversas línguas existentes. A maioria das populações ameríndias da região falavam línguas enquadradas no tronco tupi-guarani. 


Com isso, foi criada uma língua que permitiria o contato intertribal, recebendo influências do tupi-guarani, do português e de línguas africanas. É assim que surge o Nheengatu, sendo que nheen significa "língua" ou "falar" e katu que significa "bom" - ou seja, a língua boa.


A língua Nheengatu por muito tempo serviu como língua franca, por mais de 200 anos. Apesar desse sucesso, a língua começa a perder força a partir do século XIX, provocado pelas guerras e pela migração de nordestinos à região norte em busca de emprego no contexto do ciclo da borracha (idem).


Atualmente ela é falada principalmente no Alto Rio Negro. No Brasil, a estimativa é de 6.000 falantes (UNESCO), já na Venezuela estima-se 2000 pessoas. Atualmente o município de São Gabriel da Cachoeira tem o nheengatu como língua oficial.


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