Ritos corporais durante a pandemia

O primeiro caso de Covid-19 no Distrito Federal foi reportado em 7 de março de 2020. Desde então, o Brasil tornou-se o epicentro da pandemia, chegando a registrar 4 mil casos em um único dia. Como ainda não existe uma cura conhecida e durante muito tempo a vacina não esteve disponível para todos, os cuidados estão tinham como foco a prevenção. O álcool-em-gel, a máscara e o termômetro tornaram-se itens indispensáveis no cotidiano brasileiro. O texto foi escrito em 2021 mas só agora tive oportunidade de publicá-lo.



Foto ganhadora do World Press Photo. Depois
de 5 meses, uma idosa recebe um abraço de uma
enfermeira. Ao mesmo tempo que o plástico
demarca a separação entre as duas, é também
um elemento intermediador e que autoriza o
estabelecimento da relação. Nesse artigo,
iremos aprofundar esse fenômeno.
Fonte: Mads Nissen

Nessa postagem, faço um relato de campo na jornada ao mercado com Renato (36 anos), meu interlocutor, morador da Asa Norte de Brasília. O foco é em como as práticas de prevenção guiam o antes, o durante e o depois das interações entre os sujeitos, sejam eles vivos (humanos), não-vivos (mercadorias, máscaras e objetos sanitizantes) ou que estejam em uma interface em que migre entre essas duas categorias (vírus).



Argumento que os novos artefatos são elementos intermediadores de relações e que participam da gestão da vida e da morte. Para tal, articulo o conceito de cadeia operatória, proposto por Leroi-Gourhan, que Lemonnier (2004, p. 178) definiu como matéria-prima de uma etnologia da técnica; as abordagens que, segundo Sautchuk (2017) a antropologia considera a técnica a partir da ideia de transformação; e também as reflexões promovidas por Pitrou (2021) acerca da técnica e da distinção entre os seres vivos, entidades capazes de exercer as funções de vida (reprodução, crescimento, metabolização etc), e os seres de vida, responsáveis por autorizar a existência dos seres vivos.



Advogo pela superação da ditocomia entre o simbólico e o prático: a técnica, que carrega consigo aspectos econômicos e utilitários, conjulga-se com os aspectos simbólicos, influenciados pela cultura e crenças pessoais. Do lado utilitário, temos que a máscara, o termômetro e o álcool-em-gel são comprovadamente meios eficazes de controlar a taxa de transmissão do vírus se usados corretamente. Pelo aspecto simbólico,  também são elementos que autorizam ou desautorizam o início e a continuação das interações entre os seres - incluíndo os não-vivos, como o coronavírus.




 Uma breve narrativa sobre a cadeia operatória

Antes de descrever a jornada com meu interlocutor, é necessário destacar algumas informações importantes acerca da observação. Apesar de também morar em Brasília e estar familiarizado com todas as medidas sanitárias contra a disseminação do Sars-CoV-2, a observação deu-se em um período curto. Assim sendo, alguns aspectos aqui expostos poderão ser aprofundados em pesquisas futuras.



A hora de ir ao mercado não tem momento pré-definido, ela ocorre conforme a demanda por novas mercadorias surgem. Antes de ir, há a escolha da máscara: elas estão dispostas em um cesto, sem organização pré-definida. Perguntado sobre a procedência delas, o interlocutor disse que algumas foram recebidas como presente (dádiva) e outras foram compradas. Elas são feitas de algodão ou de neoprene, algumas contém estampas, são coloridas ou dotadas de frases políticas. Observei também que em certas máscaras há sinais de desgastes - sobre isso fui informado que elas são trocadas à medida que os rasgos aparecem.



Chegando no mercado, aproxima-se um segurança, também usando máscara e portando um termômetro digital, que não precisa de contato físico. Após aferir a temperatura no punho, é feito um gesto indicando onde está o totem de álcool-em-gel. Renato pega uma cesta plástica, um pouco de álcool-em-gel e passa nas mãos e no suporte plástico. Perguntei ao segurança se ele já barrou alguém porque estava com temperatura acima do permitido, a resposta foi que isso ainda não ocorreu.



No mercado, algumas estratégias são adotadas, tanto a nível individual quanto institucional, para evitar contato entre as pessoas: faixas no chão, avisos de distanciamento, placas de acrílicos e a redistribuição das prateleiras. Renato disse que evita entrar em corredores que tenha muita gente. 



No retorno, ao sair do mercado, mais um pouco de álcool-em-gel é usado nas mãos, bem como quando chega em sua residência. Questionei se ele fazia a limpeza das mercadorias com algum elemento, mas fui informado que não porque as autoridades de saúde não acham que essa é uma medida efetiva, segundo ele: 

“entreguei a Deus [a minha proteção contra a Covid-19] no primeiro dia”.




Artefatos de intermediação

Na cadeia operatória descrita, em todas as etapas técnicas, podemos notar que elas foram intermediadas por três artefatos principais: pela máscara, pelo termômetro e pelo álcool-em-gel. Esses três objetos funcionam como garantidores do asseio biológico do seu portador.



Para Sautchuk (2017), a técnica em transformação é uma abordagem que visa analisar as transformações dos processos técnicos e suas reverberações nas relações entre os seres, sejam vivos ou não. Em Bechelany (2017), percebeu-se que as relações estabelecidas entre caçador e caça foram reordenadas para permitir a assimilação da espingarda entre os indígenas paranás. De mesmo modo, foi imperativo a adaptação das regras de convívio no mercado.



Durante a pesquisa, em todos os locais em que estive, as pessoas portavam máscaras. Sobre a interação com uma pessoa sem máscara, meu interlocutor disse:


Quando você conhece muito a pessoa, você acaba ficando sem. Você confia, a máscara é uma questão de confiança. Quem você não conhece. . . Isso incomoda muito, então eu não fico com quem eu não conheço (Renato).


Nesse sentido, percebemos que a máscara remete aos valores da confiança e cuidado. Não é de forma desproposital que ele ganhou máscaras em transações de dádivas. O seu uso autoriza que as relações sejam iniciadas com desconhecidos e o desuso implica que as alianças sejam fortalecidas com os conhecidos



É possível alegar que a máscara não é simbólica, mas é dotada de um elemento funcional: ela filtra os aerossóis contendo o vírus, diminuindo a taxa de contaminação da doença. Todavia, as máscaras de neoprene - a maioria no caso estudado e um dos modelos mais vendidos em feiras populares - têm uma eficácia baixíssima (UFSC, 2021). É comum nas ruas observar pessoas com a máscara no queixo, folgada ou segurando na mão.



Igualmente simbólico é o uso do termômetro: nem todas as pessoas com Covid-19 desenvolvem febre. Além disso, é comum que o aferimento da temperatura seja feito sem os cuidados para garantir a acurácia. Durante a pesquisa, ao ser perguntado sobre minha temperatura, o segurança informou que estava em 35,1o C e o meu interlocutor com 35,5o C. Como nenhum de nós dois estávamos com quadro de hipotermia, conclui-se que ele estava desregulado, não funcionando de forma efetiva para combater a propagação do vírus.



Por fim, passemos agora a analisar o álcool-em-gel, item que age destruindo a camada lipídica do vírus e inibindo a sua reprodução. Na casa do interlocutor, o álcool-em-gel era deixado em um móvel de apoio ao lado da porta de entrada. No mercado era distribuído em vários lugares com suportes diferentes.



Ao ser questionado sobre seu uso, fui informado pelo interlocutor que sempre teve um frasco disponível desde o início da pandemia por orientação da imprensa. Há também o uso de álcool líquido 70%, só que em menor frequência.


Sempre acreditamos que a magia e amuletos pertencem
ao mundo selvagem.  Seja no Brasil ou no Sudão,  os rituais
de encantamento estão por toda parte.


Na minha investigação, notei que o álcool-em-gel era relacionado a diversos outros elementos mágicos, como o sangue de Cristo. Nesses dois casos, os objetos agem como um fonte sanitizante, purificando os objetos que se entra em contato. Em ambos os casos, portar o elemento livra da morte.



Podemos estabelecer aqui a distinção feita por Pitrou (2021) entre seres de vida e seres vivos. Os seres vivos são aqueles que realizam funções metabólicas, já os seres de vida são aqueles que permitem aos seres vivos a manutenção de sua existência: eles podem ser seres biológicos ou mitológicos (como é o caso do povo mixe que pede permissão ao Yikjujyky’Äjtpï antes de fazerem seus sacrifícios).



No caso em questão, o álcool-em-gel funciona como ser de vida: ao matar o vírus, ele protege o usuário do Sars- Cov-2 e dos seus possíveis efeitos mortais. É inevitável não fazer associação das práticas vistas com as analisadas por Evans-Pritchard (1937) entre os azandes: se para eles a magia era central, com diversos amuletos guiando as vivências, igualmente nos é os rituais de combate à pandemia, muitas vezes com efeitos práticos nulos.



 A gestão da vida é feita a todo o momento: apesar do coronavírus não ser visível a olho nu ou as pessoas infectadas nem sempre apresentarem sinais (assintomáticas), as três tecnologias citadas formam barreiras (na maioria das vezes simbólicas) de proteção.




A viagem heróica do antropólogo ao mercado


A ida ao mercado é um evento corriqueiro para os moradores das grandes cidades. Por sua familiaridade, é também repetitivo, às vezes chato, sem práticas misteriosas ou segredos escondidos de não-iniciados. A quem idealiza o fazer antropológico como ir em grandes expedições em busca do desconhecido, talvez fique decepcionado ao descobrir que o exercício da alteridade possa ser feito nos atos mais fúteis.



Vimos aqui que a técnica, o ritual, o prático, o simbólico e os artefatos culturais servem como intermediadores da vida e da morte, além de servirem como instrumentos de consagração da confiança ou do estabelecimento de contato.



Abaixo você pode conferir algumas fotos tiradas durante a incursão a campo com Renato (inclusive fica aqui os meus agradecimentos ao interlocutor).



Os ritos corporais entre os pandêmicos: a ida ao mercado

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